O Enquadramento da Cimeira dos Açores
Teresa Leal Coelho
Diário Económico de 17 de Março de 2003, Coluna Pensar Portugal
Crimes contra a Humanidade, Crimes de Guerra, Crime de Genocídio, Massacres contra populações civis, Manutenção do poder pelo uso da força, Abuso sistemático e institucionalizado do poder, Violações maciças e reiteradas dos direitos humanos, Corrida ao armamento proibido, Violações reiteradas e ostensivas de resoluções das Nações Unidas, Anexação territorial pela força, Guerra ilícita e ilegítima, Cooperação com Terrorismo Internacional fazem parte do "curriculum vitae" do indivíduo e ditador encarteirado há mais de três décadas Saddam Hussein.
O rol de acusações descrito é meramente enunciativo e a "História" de violações graves atentatórias da legalidade internacional e da salvaguarda humanitária cresce a um ritmo exponencial à medida que a "oportunidade" lhe é concedida através da "prorrogação" do prazo de execução do seu plano. Mais de trinta anos de "convivência" atribulada - mas profícua para o Ditador apesar de raros revezes - com o Conselho de Segurança das Nações Unidas permitiram-lhe um currículo só alcançável se integrado num Sistema Internacional incapaz de prevenir a catástrofe e de assegurar parâmetros mínimos de salvaguarda humanitária.
Neste caso, a incapacidade demonstrada pelo Sistema Internacional institucionalizado pela Carta das Nações Unidas é matéria de facto indubitável. Os factos que consubstanciam os crimes perpetrados por Saddam Hussein e pelo seu regime, bem como os respectivos propósitos para o futuro (que implicam a manutenção da política de corrida ao armamento proibido e a permanente dissimulação patética das violações das resoluções das Nações Unidas em matéria de desarmamento) são do conhecimento público internacional tanto ao nível das opiniões públicas, como dos media e naturalmente dos governos dos Estados que compõem a Comunidade Internacional.
O diagnóstico está feito. Ignorar as violações já verificadas e o perigo efectivo da prossecução de acções que degenerem em novas catástrofes traduzirá a perpetuação da ineficácia do Direito Internacional e a incapacidade da manutenção - ou mesmo da implementação - duma Ordem Pública Internacional que seja preventiva de drama humanitário.
A paralisia do Conselho de Segurança das Nações Unidas - não se tratando de um facto novo no Sistema Internacional embora em novo contexto que destronou o móbil específico prevalecente no período da "Guerra Fria" - é hoje tributária da resignação e da insensibilidade perante o drama humanitário. A cegueira e surdez dos Estados membros da Comunidade Internacional perante diagnósticos de violação maciça dos direitos humanos no interior do Estado (tirania interior) e da iminente ou já consumada exportação da violência (perigo exterior) que decorre de apatias e egoísmos nacionais, não são compatíveis com a partilha de responsabilidade decorrente da modelação de um Sistema Internacional originariamente descentralizado de salvaguarda humanitária.
Ainda que se considerasse que a Carta da Nações Unidas de alguma forma revogou a regra consuetudinária relativa à competência Estadual para exercer o seu "direito natural de legítima defesa individual ou colectiva...", o que não considero sustentável nem pela letra da Carta, nem pela prática internacional, mas particularmente pela natureza do poder/dever de salvaguarda humanitária que não admite quaisquer restrições que impliquem diminuição da Garantia, jamais seria admissível abolir o principio da subsidariedade nesta matéria.
O fim e objectivo de salvaguarda humanitária é proeminente a quaisquer outras regras jurídicas. Mesmo admitindo uma qualquer proeminência do Sistema Internacional consagrado na Carta das Nações Unidas e, nomeadamente, no respectivo capítulo VII - posição que tem sido quase unânime no conflito que opõe a Comunidade Internacional ao Iraque, digo "quase" em virtude da excepção do Iraque que não cumpre as resoluções que lhe são dirigidas, manifestando-se desta forma "não vinculado às decisões do Conselho de Segurança", todos os restantes intervenientes têm feito da ONU um palco privilegiado para a resolução do conflito - se a ONU não puder ou não quiser intervir, o Direito Internacional e o Sistema Internacional só serão eficazes se em regime de subsidariedade alguns membros da Comunidade Internacional assumirem a responsabilidade de prevenir novas catástrofes humanitárias.
Para todos quantos defendem a subsistência da ONU e a proeminência do Conselho de Segurança em matéria de salvaguarda humanitária e manutenção da paz e da segurança internacionais a subsidariedade poderá operar em regime provisório até que o Conselho de Segurança retome as suas responsabilidades. O prolongamento da subsidariedade será exclusivamente imputável aos membros do Conselho de Segurança que se abstiverem de agir através da adopção das medidas adequadas à reposição da legalidade e que desta forma se demitem das suas responsabilidades (é neste plano que as opiniões públicas sem fronteiras poderão e deverão manifestar-se).
É neste enquadramento que a Cimeira dos Açores reúne. É neste enquadramento que os membros da Comunidade Internacional que participaram na Cimeira dos Açores assumiram a sua responsabilidade em matéria de salvaguarda humanitária, de manutenção da paz e segurança internacionais e de reposição da legalidade assegurando o cumprimento do Direito Internacional e impedindo novas prorrogações para as práticas torcionárias pelo regime de Saddam, é desta forma que poderá dizer-se "Humanity Bless Azores/ 2003".